Público

por Pedro Rios, Set 2006 (Lisboa, Portugal)

1- “Space” marca uma nova fase no seu percurso. É radicalmente distinto dos outros discos que já lançou. É um disco de ruptura?

É um disco de lançamento, de afirmação, de inauguração. É o primeiro disco de muitos neste campo. Não usaria o termo “ruptura”, porque a linha de trabalho anterior completou-se por si, foi pacíficamente encerrada. Como se tivesse acabado de construir uma grande casa e agora começasse a construir outra. Também não lhe chamaria uma “fase”, mas sim uma nova “obra”. Quase uma segunda vida.

2- Foi gravado praticamente só por si, usando múltiplas camadas, e, penso eu, idealizado durante três anos. Às vezes soa a um ensemble devido ao trabalho de orquestração que teve. Foi um desafio maior do que os discos anteriores?

Muito maior. Tive que configurar de raiz uma abordagem nova à música, e posicioná-la em termos artísticos, técnicos, estéticos, históricos e culturais. Não foi (nem está a ser) nada fácil. O Space em si foi muito complexo de gravar, porque eu quis que os instrumentos electrónicos parecessem ouvir-se uns aos outros. Foi um trabalho gradual e meticuloso, criar um “espírito de grupo”, uma colecção de registos de electrónica experimental que dão a sensação de partilhar um evento colectivo, que “estão lá” uns para os outros. Inspirei-me um pouco numa “big-band” de jazz.

3- Pelo que sei, criou dezenas de instrumentos e uma linguagem para cada um deles. Como é que foi esse processo?

Talvez não dezenas, não são assim tantos… mas um instrumento para mim é uma configuração tecnológica com capacidade performativa, ou seja, nem sempre é um objecto. Por isso, as minhas configurações instrumentais são mutáveis ao infinito. Para cada instrumento, tenho que decidir para que quero que sirva. De seguida, como se relaciona com o corpo, como se pega, onde se mexe, que tipo de movimentos implica. Com prática e experimentação, descubro as suas possibilidades musicais e estabeleço um “vocabulário” rudimentar. O sistema musical de Sei Miguel é uma ferramenta central neste processo, aqui começo a aplicar a minha abordagem. Finalmente, estudo a estruturação de discurso, o que já é uma manifestação de uma espécie de “linguagem”.

4- A guitarra não parece estar presente em “Space”. Quis cortar definitivamente com o seu instrumento de há 20 anos para cá?

Não. Não há de facto guitarra no Space, mas prevejo no Space Program – e é um dos seus objectivos – regressar à guitarra. Neste projecto, eu poderia aplicar à guitarra várias dimensões e planos de discurso que ainda vou desenvolver em discos posteriores, e sintetizar tudo num só instrumento, como um super-instrumento.

5- Queria cortar também com o rótulo “ambient” que se colava ao seu trabalho? Estava-se a tornar confortável fazer música?

O meu trabalho anterior era assumidamente “Ambient”, entre outras coisas. Eu percebi a tempo que tinha chegado à plenitude com esse trabalho, enquanto concluía o Violence of Discovery and Calm of Acceptance, que é a obra principal desse período. Achei que se continuasse por ali, iria repetir-me, iria repisar uma fórmula já testada e aprovada. Não quis acomodar-me a uma posição confortável, tenho necessidade absoluta de criar e enfrentar desafios.

6- É curioso que o disco se chame “Space”, nome que não ficaria mal a alguns dos seus discos anteriores. Porquê o espaço?

Tem várias leituras. Uma delas é o evocar da necessidade crescente que temos, nos nossos dias, de espaço. Espaço físico, espaço visual, espaço acústico, espaço mental. Está tudo cada vez mais saturado, todos os tipos de espaço são cada vez mais um luxo. Outra é o espaço musical, equivalente a silêncio. O silêncio tocado, quando em colectivo, é um espaço livre, aberto para os outros. Um músico que nunca se cala satura o espaço. Outra leitura ainda refere-se a uma abordagem estética à electrónica que se identifica de algum modo com… um certo imaginário retro-futurista de ficção científica.

7- Já disse que a música ambiental era para si, mais do que um estilo, algo que “acomodava diferentes níveis de atenção”. Neste sentido, “Space” é ainda música ambiental?

Duvido muito. O meu trabalho anterior, no que respeita à atenção, sugeria diluição, enquanto componente do ambiente sonoro, enquanto o Space Program tem a ver com concentração. O trabalho anterior era imersivo, o actual é focado. O anterior, evasivo, “escapista”. O actual, algo em sintonia com o nosso tempo, que exige acção e consciência. O Space Program estimula a atenção.

8- Parece-me um disco praticamente infinito, na medida em que é possível entrar nele por múltiplas entradas. Senti-me perdido dentro dele (elogio). Foi pensado como um objecto não linear?

Sempre me interessou que um trabalho tenha várias facetas e propicie várias abordagens. Mas no entanto, a minha “obra” anterior tinha mais essa vocação múltipla (curiosamente, enquanto lidava com o som como entidade una, consistente). O Space Program é mais unívoco, cada elemento é o que é de uma maneira muito clara. Na sua complexidade, o Space é na verdade uma coisa só (curiosamente, por via de uma grande diversidade de sons…).

9- Qual é a importância do silêncio neste disco?

O silêncio enquanto parte integrante do discurso musical. Além de ser espaço, esse silêncio re-configura o significado de cada som, é a forma do espaço à volta dos sons. E é uma componente absolutamente essencial na estrutura do fraseado. Os dados rítmicos são principalmente manifestados por silêncio.

10- “Jazz em electrónica”. É assim que define o disco no seu “site”. Pode explicar melhor esta abordagem, por comparação às experiências de contaminação que já existiram no passado?

(sorriso) A resposta já está na pergunta. De facto, a grande maioria, senão totalidade, das experiências que conhecemos de jazz com electrónica são, realmente “contaminações”… mais concretamente, meios electrónicos que são integrados em grupos de instrumentos convencionais. Para além disso, há ainda a acrescentar que uma larga maioria dessas manifestações ocorre em instrumentos de teclado, pelo que o pensamento discursivo por trás dos sons electrónicos é também convencional (baseados em notas, escalas, acordes). O Space é um projecto ambicioso, mas também algo exterior ao jazz. Básicamente, consiste numa espécie de orquestra de jazz inteiramente electrónica, com instrumentos que não lidam com as estruturas tradicionais e com uma abordagem baseada no som puro e não em notas. As notas musicais são conceitos abstractos, não são sons. Enfim, uma forma de jazz que emerge de dentro da electrónica.

11- Diz, no texto de apresentação do álbum, que “Space” seria jazz contemporâneo se este estilo não tivesse entrado em regressão nos anos 80. Pode concretizar melhor esse seu entendimento do álbum?

Cheguei a essa conclusão enquanto tentava perceber qual o seu enquadramento histórico. Não conheço nada semelhante, pelo que isto é, em termos históricos, uma “ave rara”. Apenas lhe encontrei sentido histórico numa realidade paralela, imaginária. Devo ressalvar que o jazz não parou de evoluir, apenas se tornou uma música algo “underground”, sem sombra da expressão popular que teve até ao fim dos anos 1960. Há muitos músicos activos em jazz contemporâneo a quem devo o maior respeito. Voltando à pergunta, se quisermos imaginar uma evolução massiva do jazz para lá do “free”, é possível que, com integração da electrónica, tivesse chegado em 2006 a um universo em que o Space seria comum. Já alguém teria feito um Space…

12- De que forma é que a sua colaboração com o Sei Miguel influiu no desenho de “Space”? O que é que aprendeu com ele?

Sei Miguel é um mestre genial, e um dos seus maiores feitos é o ter criado um sistema musical próprio, de raiz. Esse sistema é central para o meu estudo de estruturação de discurso. Interessa-me profundamente, porque acolhe todo o espectro sonoro e lida directamente com o som e o silêncio como elementos primários, deixando de lado todo o edifício da teoria musical convencional. Outra virtude gigante de Sei Miguel é o facto de, ao dirigir um músico, fazer com que ele simplesmente materialize o seu próprio trabalho, dando-lhe um foco duma acuidade impressionante.

13- Cita Sei Miguel, quando diz que “Space” não foi “composto, nem improvisado, nem um compromisso entre os dois”. Como é que foi, então, o seu método de criação? E de que forma mudou relativamente ao seu trabalho anterior?

Aqui temos que fazer uma distinção clara: Essa citação aplica-se à performance, ao tocar. Não é improvisado, porque observa uma disciplina e é estrutural (o desenrolar do discurso é já por si estruturante). Não é composto, porque se baseia em decisões instantâneas, a sua evolução de pormenor é imprevisível e sempre diferente. Não é um compromisso, porque é outra maneira de pensar, situa-se fora do eixo “composto – improvisado”. Agora — eu escrevi que, por oposição ao meu anterior trabalho “ambiental”, em que a matéria de composição era o som, no Space Program a matéria de composição é a performance. Ou seja, não componho com sons mas com gravações de fraseado, com material tocado. Posto isto, naturalmente que o Space é uma composição, foi exaustivamente, meticulosamente composto, a partir de muitas horas de gravações.

14- O disco integra-se no chamado “Space Program”. Em que consiste esse programa e como é que o disco se situa dentro dele?

O Space Program foi lançado em 2004, com o “Space Study 1”, parte duma série de peças de concerto focadas em instrumentos específicos, e até hoje já estreei quatro. O Space é o primeiro disco do programa e não pertence a nenhuma série. Haverá mais duas séries, de discos, sendo uma a Space Elements – uma série em que cada disco é centrado num tipo de instrumentos, em formações reduzidas e com convidados. A outra série, Space Solo, como o nome indica consiste em gravações a solo absoluto, também agrupadas por tipos de instrumento. É trabalho para vários anos, possívelmente até 2012.

15- Colaborou com nomes de topo da música dita experimental, como Lee Ranaldo, Loren Connors, Phill Niblock ou John Zorn. Apontar para o mundo é a única saída para um músico experimental português?

A música é uma realização humana, e o habitat humano é o planeta. Se não fazemos folclore local, nenhuma noção de território faz sentido. Acho mesmo que o mundo é pequeno, se pudesse fazia concertos em Júpiter. Português ou esloveno, isso não interessa nada. Quem achar que basta fazer música no e para o seu país, está condenado a uma obsolescência profunda.

16- Essas colaboração influem no seu trabalho em nome próprio?

Tocar com outros músicos é uma confrontação de discursos. Tocar com músicos excelentes apenas permite conseguir uma música mais exigente, mais elevada. Não altera muito, mas faz diferença. Por exemplo, há meses tive um pequeno encontro com Evan Parker e a música que resultou desse duo foi duma precisão incrível, o que se deve muito à sua enorme experiência. Tocar ao lado de grandes músicos é sempre uma experiência de que não se sai bem igual, aprende-se sempre alguma coisa. Mas a resposta é não. Dou valor à afirmação de um discurso próprio.

17- Observa um certo fervilhar nas músicas mais livres, sobretudo em Lisboa (visível, por exemplo, em bandas como Fish&Sheep ou CAVEIRA e na série de concertos que Sei Miguel tem dado este ano)? Se sim, como é que o entende?

É muito entusiasmante e encorajador, depois da “seca” que foram estes últimos anos. Também o aparecimento da editora Esquilo, da Merzbau (“netlabel” que se junta à Test Tube), o crescimento da Creative Sources e excelente programação actual da galeria ZDB. Tudo sinais de uma criatividade irredutível e que traz uma vitalidade e um vigor que são mais que bem-vindos. Quanto a Sei Miguel, continuamos a trabalhar e continuo a entender que o reconhecimento mundial do seu génio está perto.