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Rafael Toral quer mudar o mundo

Por Rodrigo Amado, Julho 2011

Se não fosse músico, Rafael Toral poderia facilmente ser um cientista ou um investigador. Uma enorme curiosidade, um rigor invulgar no desenvolvimento de novos conceitos e direcções e um permanente sentido de descoberta e aventura fazem dele um dos mais fascinantes músicos nacionais, e um dos pontas-de-lança da electrónica mundial.

 

Quando lançou, em 2001, “Violence of Discovery and Calm of Acceptance”, Rafael Toral era já um dos mais importantes representantes da chamada ambient music, uma música electrónica ambiental feita de drones e texturas, subtil e delicada, mas simultaneamente experimental. Aclamado pela crítica internacional como um dos seus melhores trabalhos – o “Chicago Reader” considerou-o “um dos mais maravilhosos discos de música de guitarra feitos na última década” -, o disco projectou-o definitivamente para a linha da frente da electrónica mundial, sendo agora possível encontrar os seus discos um pouco por todo o mundo.

 

Em 2005, apesar de todo este reconhecimento, Toral sentiu que era necessária uma mudança: “Quando terminei a gravação do ‘Violence of Discovery…’, o último disco da fase anterior, todo feito com guitarras, percebi claramente que o que poderia fazer dentro daquela estética estava completo. Tinha chegado ao fim de um ciclo. Não iria fazer mais nada se não estar a repetir-me a mim próprio e a uma fórmula já testada e com sucesso. Decidi terminar essa linha de trabalho. Durou cerca de 15 anos.”

 

A música que fazia então era uma experiência imersiva, que Toral sentia ter algo de escapista, funcionando como um convite a que nos desligássemos da realidade. Ora, explica, “o mundo, no seu estado actual, requer que sejamos muito mais activos e conscientes enquanto individuos”. Acção directa, portanto: “A abordagem que faço à música no ‘Space Program’ é muito mais actuante e activa. Tem a ver com a acção directa do indivíduo e com tomarmos as nossas próprias decisões e sermos responsável por elas. É quase uma inversão em relação ao trabalho anterior.”

 

Posto perante a infinidade de rumos a seguir, a primeira decisão de Rafel Toral foi fazer uma coisa tão radicalmente oposta à que fazia antes quanto possível. Decidiu então que a base desta nova música seria o silêncio (quando anteriormente havia uma continuidade de sons), em cima da qual criaria depois uma espécie de população de sons. “Decidi também que esses sons seriam electrónicos e produzidos exclusivamente com base em decisões pessoais. Aí surgiu a questão: como? Percebi que tinha de ter um sistema disciplinado para poder tomar decisões sobre esses sons, chegando à conclusão de que o campo musical onde estava mais desenvolvida essa prática era o jazz”, explica ao Ípsilon.

 

Perguntamos-lhe se não sente uma certa contradição no facto de passar a trabalhar numa área mais ligada ao jazz utilizando instrumentos da electrónica. Porque não pegar na guitarra, o seu instrumento original, e improvisar, adoptando uma postura mais comum no jazz de vanguarda actual? “Essa é talvez a característica do ‘Space Program’ que o torna único e faz com que seja um desafio tão exigente. Aquilo que estou a fazer, que eu saiba, nunca foi feito antes. O desafio é justamente ter uma intervenção no campo da música electrónica, propondo conceitos e prácticas por onde a electrónica normalmente não anda, nomeadamente a valorização da simplicidade e do gesto, uma certa fisicalidade da performance em palco, e a utilização de um léxico musical sujeito a decisões individuais tomadas em tempo real. Tudo isto são características do jazz e não da música electrónica.”

 

Impondo-se a si próprio esta espécie de impasse criativo – é o primeiro a reconhecer que nem ele próprio sabe bem aonde o levará este novo rumo -, Toral mantém no entanto uma invulgar lucidez relativa à importâcia do trabalho que desenvolve actualmente: “Quando tentei perceber qual a linhagem histórica daquilo que estava a fazer, percebi que me encontrava numa espécie de encruzilhada histórica entre a música electrónica e o jazz”.

 

Procuramos saber mais sobre o actual projecto e o significado do nome escolhido, recusando a analogia óbvia entre a sua actividade e a de um explorador espacial – ambos guiados pelo sentido da descoberta, rumo a um horizonte desconhecido – e insistimos. “Tem a ver com uma espécie de equivalência que há entre o espaço e o silêncio, e as implicações que isso tem na música. Ou seja, uma preocupação com a gestão do tempo e do silêncio, e com a incorporação do silêncio no fraseado. É no fundo uma forma de lidar com o espaço (musical). É também uma espécie de ‘statement’ sobre a saturação de todas as formas de espaço nas nossas vidas: visual, mental, acústico e físico. O espaço tornou um bem cada vez mais valioso…”, argumenta.

 

Tocar com o corpo todo

 

 

 

Há muito que Rafael Toral é um dos mais fervorosos adeptos da música do trompetista e compositor Sei Miguel, bem antes de este começar a ser reconhecido internacionalmente por figuras tão distintas como Joe Morris ou Dave Douglas. Colaborando em muitas das suas formações, Toral é um dos músicos que melhor conhecem os mecanismos que regem a sua arte. “Não lhe chamaria bem uma influência… é mais do que isso. Colaboro com o Sei Miguel desde 1993, ou mesmo antes, e sempre tive um enorme fascinio pelo seu método de trabalho e sistema de direcção. Ao longo do tempo, enquanto ia formando esta nova práctica, acabei por criar uma espécie de versão do seu sistema, adaptada às minhas noções sobre som e sobre música e ao trabalho que realizo com a electrónica”, comenta.

 

 

 

Assistindo a uma das performances ao vivo do “Space Program”, é possível observar Toral a manipular uma série de dispositivos electrónicos adoptando uma postura invulgarmente física – Toral contorce-se, literalmente, arrancando uma resposta invulgarmente dinâmica a instrumentos que são, por definição, lineares. O prazer de manipular um destes instrumentos electrónicos poderá ser idêntico ao de tocar uma guitarra? “Concebi todos estes instrumentos de forma a serem simples de tocar. Não só permitem como exigem que todo o corpo esteja envolvido no acto de tocar. Essa é para mim uma questão central, pois é outro dos pontos que me distingue da cultura da música electrónica, onde o músico tem uma atitude mais passiva, habitualmente sentado a uma mesa a olhar para um ecrã de computador e a clicar em botões. Para mim é importante ter uma prática enquanto músico que permita que eu use estes instrumentos como veículos de uma experiência musical total, ou seja, simultaneamente espiritual, mental e visceral. É muito importante a capacidade de abandono do fluxo musical aos impulsos do corpo, em decisões que podem ser ditadas pelo estômago ou pelos joelhos.”

 

Tendo em conta que alguns desses instrumentos não têm uma capacidade de resposta tão rápida que lhe permita saber exactamente que som irá ser produzido num determinado momento, chamamos a atenção para uma eventual contradição com o conceito de improvisação, da tomada de decisões em tempo real: “O ‘Space Program’ tem muitos paradoxos, e esse é um deles. Os instrumentos foram criados para responderem instantaneamente a qualquer acção, mas tendo sempre uma certa margem de erro. Se eu quiser tocar um dó sustenido, irei provavelmente fazer algo aproximado e nunca rigorosamente exacto. E se o quiser repetir, algo idêntico acontecerá. São instrumentos construídos à mão, sem livro de instruções ou técnica pré-estabelecida. Lidam livremente com todo o espectro sonoro e são completamente inaptos para lidar com o sistema de notação ocidental – não tocam acordes ou escalas. O controlo é o suficiente para que haja um discurso musical e uma noção de fraseado idêntico ao que existe, por exemplo, no jazz, mas, por outro lado, faz com que seja impossível a descrição, codificação ou notação dos sons a tocar, negando assim toda a cultura instrumental técnica do jazz. Por outro lado têm tudo a ver com a história da música electrónica, com uma certa inventividade ligada à criação manual de circuitos electrónicos, com o ferro de soldar”, diz Toral.

 

Toral procura assim “criar uma música que é sempre sobre coisa nenhuma, tendo-se a si própria como tema e como consequência aquilo que é o supremo grau de liberdade musical”: “Uma música que, sendo tocada por mim é, ainda assim, livre de mim próprio”.

 

Esta mudança radical de percurso ainda está a ser processada pelo público que conhecia Toral do trabalho com a guitarra. “Esse público tem alguma dificuldade em situar culturalmente este novo projecto. Mas se faço coisas é porque quero mudar o mundo, e a minha proposta é que dentro da cultura da música electrónica se estabeleça que é possível uma abordagem mais humana, mais simples e mais física. Este novo desafio custou-me caro, porque cancelei uma linha de trabalho que tinha bastante sucesso para iniciar uma ideia nova, de cuja validade tenho ainda de convencer todo o mundo. Estou no fundo a começar tudo de novo.”

 

Com a edição recente de “Space Elements Volume 3”, ponto central na estrutura editorial do projecto – serão ainda editados dois registos solo e três da série “Space Elements” -, Toral sente ser este o momento ideal para um balanço: “Ainda há muito por fazer. Quando aparece uma nova técnica, tal como no jazz, há sempre um percurso de apuramento. Uma depuração formal que é lenta. Sinto que houve uma enorme evolução, mas que ainda soa longe de ter chegado a algum lado. É um pouco como a procura do Santo Graal – a capacidade de tomar decisões perfeitas, continuamente, durante um determinado período. Para já, é um percurso que não tem fim.”

 

 

Rodrigo Amado, Público (link original)