Mana (PT)

por Daniel Quintã, Junho 2011 (Porto, Portugal)

Desta vez voltámos depressa para vos oferecer a sessão número quatro do Mana. Não foi fácil, contudo, reunir este material. Iniciámos o diálogo com Rafael Toral já em Abril, a propósito dos sete anos de Space Program celebrados por essa altura. Já há muito que queríamos falar com ele, pela importância que teve, tem, e terá para nós.
Entrevista de percurso vagueando pelo Space Program, com algumas questões relevantes que não haviam sido ainda colocadas, e onde Toral resume tudo aquilo que precisam de saber sobre a empreitada a que se propôs. No player podem ouvi-lo a tocar a solo (Space Study 2) a 18 de Março de 2011, no Laboratorio Arte Alameda, Ciudad de México.

M.: Aqueles que acompanhavam o seu trabalho pré-Space Program esperavam antes a edição do terceiro volume das Harmonic Series (Installation Version). O que impediu a conclusão desta série?
R.T.: Essa versão é um trabalho que nunca imaginei publicado no circuito discográfico, acho que não é uma peça musical. É uma instalação que chamei, por oposição a site-specific, de site-universal. Uma espécie de instalação sonora portátil. Como entretanto suspendi a minha actividade no circuito artístico, não surgiu contexto apropriado para a publicar… Há-de ser publicada um dia, não está esquecida e é um trabalho válido.

M.: O Space Program é apresentado como sendo uma abordagem absolutamente nova à música electrónica. O que distingue esta abordagem daquela que presenciamos em On Air dos No Noise Reduction? Aparentemente parecem ser muito próximas. Aliás, é curioso o facto de o Modified MS-2 Amplifier – hoje um dos principais instrumentos a que recorre no Space Program – ter sido mesmo utilizado pela primeira vez nas gravações de On Air, já em 1995 portanto.
R.T.: Não me lembro de ter usado a palavra “absolutamente” (tenho cuidado com as palavras), mas eu diria que esta abordagem é uma configuração de práticas e atitudes que não são novas em si mas nunca tinham sido postas em campo deste modo.
É uma boa pergunta. A diferença com o On Air é simples. O On Air foi um trabalho exploratório, experimental, logo a componente de improvisação foi muito forte. Um percurso de exploração pelas possibilidades dos instrumentos. No Space Program uso de facto alguns instrumentos em comum, mas aqui trata-se de estabelecer um léxico de formas e tipos de fraseado que são empregues com um pensamento claramente compositivo. Ou seja, não é exploratório nem improvisado (e é apenas algo experimental pela natureza imprevisível do instrumento), toco com um nível de controlo muito superior e tomo decisões aplicando parâmetros e valores muito mais rigorosos.

 

M.: Partindo da performance, esta abordagem exige por parte dos músicos intervenientes uma disciplina na tomada de decisões em tempo real. O comportamento imprevisível dos instrumentos que concebe não é incompatível com esse rigor?

R.T.: Excelente pergunta. Um dos pontos centrais do Space Program passa por aí. O comportamento algo imprevisível destes instrumentos electrónicos (estamos a falar duma pequena margem de erro) torna impossível a repetição exacta de qualquer som. A consequência desta opção é que fica vedada qualquer hipótese de codificação de significado. A música fica assim intrinsecamente impedida de ser descritiva, narrativa, ou explicitamente evocativa. Portanto é sempre sobre coisa nenhuma, o que implica que também não é sobre… o próprio músico. A música foge sempre a esse nível de controlo, logo é uma música livre de mim próprio. É o grau supremo de liberdade que consigo conceber em música. Uma espécie de música pura que se basta a si própria enquanto assunto, enquanto resulta de decisões individuais e livres em que se assume responsabilidade pelas mesmas. Devo ressalvar que no Space Collective nem todos os músicos funcionam deste modo, o grupo integra instrumentos convencionais também, como bateria ou piano. Quanto à disciplina, é uma disciplina para usar critérios de decisão, ou seja, adopta-se um campo de possibilidades bem definido e coerente consigo próprio, para nele tomar decisões. O uso desses critérios produz uma música mais clara e consistente quanto mais rigoroso for, e o mesmo se aplica à execução dessas decisões. O gesto, o ataque, a emissão sonora estão em si imbuídos desse rigor.

 

M.: Este rigor aplica-se não apenas aos músicos, mas também aos seguidores do Space Program. Em oposição à corrente de música ininterrupta que nos envolve de manhã à noite, para apreciarmos e compreendermos devidamente o seu trabalho precisamos de parar, precisamos de tempo e espaço. Todos os discos do programa têm conhecido edição em CD e LP. Que formato elege para ouvir a sua música?

R.T.: Claramente que o melhor veículo será ao vivo, é em performance que o Space Program é mais completo e actuante. É pensado para o contacto directo com outros músicos e com o público. Mas os suportes gravados permitem estratégias de composição impossíveis de realizar em concerto. O CD e o vinil são muito diferentes. Enquanto o vinil tem qualidades sónicas muito próprias, também tem muitas limitações pelas propriedades físicas das agulhas. O CD não tem restrições de dinâmica nem de fase, nem de gestão do espectro sonoro nem da própria superfície do vinil como têm os LP’s, que por outro lado é um formato de eleição do ponto de vista táctil.
Em relação ao rigor de escuta, na verdade não acho que esta música seja demasiado exigente de atenção, quero fazer uma música que se possa ouvir como outra qualquer. Pode parecer difícil porque não é comum, e convida a um exercício nem sempre fácil: imaginar como soaria esta música se nunca se tivesse ouvido música antes. É normal a nossa capacidade de escuta estar condicionada a modelos e paradigmas do que nos habituámos a entender como música que se pode entender e fruir.

 

M.: Uma das funcionalidades mais interessantes que podemos encontrar no seu website é a Noise Precision Library. Se a consultarmos observamos que está constantemente a descobrir e reequacionar coisas que estão para trás. Um outro traço seu daqui deduzido é o facto de gravar muito. Impõe a si mesmo uma rotina enquanto músico?

R.T.: Bem, só tenho feito essa pesquisa de arquivos para enriquecer o catálogo disponível online. Foi uma revelação, tendo decidido disponibilizar materiais inéditos que nunca seriam publicados em disco, descobrir a grande quantidade de material que mesmo assim tem qualidade e pode ter interesse partilhar. Ainda há muita coisa por publicar, para não falar em gravações futuras que também podem ser aí oferecidas.
Normalmente gravo muito, sim, tento ter o cuidado de documentar bem todos os concertos. Em estúdio também gravo e guardo takes alternativos (embora também aconteçam sessões espontâneas,  gravadas sem sequer tentar fazer algo em particular). Gravar transforma a performance em matéria, e essa matéria é usada em composição. De resto, não tenho rotina nenhuma, posso estar meses sem tocar, e de repente pego num instrumento e estou em pico de forma. É estranho, parece que a minha aptidão para tocar é um estado mental.

 

M.: O Space Program completou sete anos em Abril. Que balanço faz deste período?

R.T.: Penso que esta é uma boa altura para fazer um balanço. Quando saiu o Space em 2006, teve um grande destaque mediático, mas quase todas as críticas diziam “isto é muito interessante, mas esperamos para ver como a coisa evolui no futuro”, muitas vezes num tom algo céptico, perante a ambição do que propus na altura. Chegamos a este momento e o projecto mostra um corpo de trabalho já consolidado e acho que está mais maduro. Vamos exactamente a metade da estrutura prevista de edições.
Para relembrar, o Space Program é um desafio de grande escala e explora a fundo possibilidades de tocar música electrónica com uma abordagem instrumental e física, com instrumentos não convencionais, e baseada em decisões disciplinadas. É uma música ao mesmo tempo espiritual, mental e visceral. Para mim é um desafio gigantesco, porque não tem precedentes, estou a explorar território desconhecido.
Ao vivo, dou concertos em que “habito” as possibilidades de instrumentos diferentes, e chamo-lhes Space Studies. São solos relativamente curtos e toco geralmente três num concerto. Tem sido um caminho de aprendizagem, de contacto com públicos muito diferentes, dos EUA, Canadá, México, Europa, Coreia do Sul, Japão, Austrália, Nova Zelândia… Para minha sorte, tenho tocado com músicos que admiro, como Chris Corsano, John Edwards, Michael Zerang, Roger Turner ou Joe Morris.
Esta estrutura contempla um disco de inauguração que é uma espécie de orquestra electrónica (Space, 2006) e duas séries. A primeira, Space Solo, como o nome indica trata de documentar gravações em solo absoluto. Estão previstos 3 discos dessa série, da qual saiu em 2007 Space Solo 1 e estou agora mesmo a terminar o Space Solo 2.
Depois há a série Space Elements, que reúne peças em pequenas formações que muitas vezes incluem músicos convidados. É um privilégio gravar com estes músicos, entre os quais estão David Toop, Evan Parker, Tatsuya Nakatani ou Manuel Mota. Sempre presente está o incrível César Burago, assim como o mestre Sei Miguel. Também têm estado presentes músicos com quem tenho trabalhado num projecto de direcção orquestral que é o Space Collective. Afonso Simões, Riccardo Dillon Wanke, Ruben Costa, têm sido generosos comigo nesse percurso em expansão lenta. Esta série vai ter seis volumes, e recentemente saiu Space Elements Vol. III, que é uma peça central e conclui a primeira fase do programa. Saíram então já três volumes desta série, o que totaliza cinco discos dos dez previstos. Muito provavelmente, o Space Collective vai abrir uma nova série de edições do Space Program, mas sem nenhum calendário previsto.
Um desenvolvimento recente que se prende com o Space Collective é a capacidade para partilhar estas práticas em acções-relâmpago, o Space Program Workshop. É mais um desafio que roça o impossível (parece que sou especialista nisso), “conseguir” em três dias o trabalho de três anos. O primeiro workshop foi em Berlim, e os resultados foram muito intensos.
O Space Program tem sido bem recebido pela imprensa, embora muitas vezes o entendimento seja difícil pela “transferência” de valores que operei. Ou seja, cada género musical é normalmente apreciado e entendido à luz do seu próprio sistema de valores e referências. O que eu faço é música electrónica, mas afasta-se muito das referências desse género, e por vezes torna-se difícil apreciá-la desse ângulo porque uma das ideias centrais do Space Program é a performance de música electrónica à luz de um outro sistema de valores, que é oriundo do jazz. No entanto penso que essa ideia se vem clarificando cada vez mais, e o novo Space Elements Vol. III é o exemplo mais eloquente disso.
De futuro, acho que vou dar mais prioridade ao trabalho de direcção e de colaborações ao vivo, continuando sempre a construção deste mosaico gigante – cuja forma só se vai revelar totalmente quando estiver completo. Não sei quando estará, o ritmo de trabalho tem sido mais lento do que imaginei a início. É capaz de levar mais uns 5 anos.

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Rafael Toral
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