Expresso

por Jorge Pires, 3 Ago 1999 (Lisboa, Portugal)

entre o som e o silêncio

Músico, compositor, sonoplasta e produtor discoráfico, Rafael Toral apresenta hoje à tarde no Porto (Edifício Artes em Partes, R. Miguel Bombarda, 457) uma intervenção musical chamada «Infinity Blur» – um concerto diferente, onde a graça não estará tanto naquilo que se ouve, mas antes no que se não ouve, ou no que se julga ouvir. É uma abordagem do universo musical que visa aprofundar as intuições fundamentais de teóricos como John Cage  O universo de Rafael Toral, o seu percurso, as suas obras  – e mesmo alguns videos – são exibidos em detalhe no site www.terravista.pt/mussulo/1806.

Para além da intenção de conduzir o ouvinte ao limiar da escuta, tornando-o atento ao acto de «diluição da matéria musical no infinito», o que mais aproxima «Infinity Blur» do disco que publicou no início deste ano, «Aeriola Frequency»?

Bem, o que os aproxima é o facto de ambas serem trabalhos de música ambiental – uma música que não exige atenção para ser ouvida, que se pode integrar com os sons “não musicais” que ouvimos em nosso redor ou “colorir” o ambiente sonoro de um espaço.

De resto, “Infinity Blur” é radicalmente diferente de “Aeriola Frequency”, no sentido que é um exercício de escuta. Esta peça consiste num fluxo de acontecimentos sonoros gravados em suportes diferentes e misturados ao vivo, mas com a particularidade de o nível sonoro ser tão baixo que a música se confunde com a composição do silêncio no local. Neste caso, o concerto é à tarde e ao ar livre, pelo que esse silêncio deve ser bastante rico. A dinâmica dos sons pode criar a ilusão de que aparecem e desaparecem, pelo que frequentemente se vai deixar de ter a certeza se estamos realmente a ouvir alguma coisa ou apenas julgamos estar a ouvir.

As experiências de exploração dos limites do som, e da música, como é o caso, operam numa fronteira muito estreita entre a Estética e a Física? Como resolve esse dilema?

Tratamos aqui de exploração nos limites da música, uma vez que, há uma mistura de sons produzidos com intenção musical com sons não intencionais. Por isso, vou estar a trabalhar com um conceito radical de Música: uma experiência estética sobre uma percepção sonora. Ou seja, quem ouve elabora um juízo estético sobre aquilo que ouve, seja música (na sua origem) ou não…

Aqui, esse dilema é constante. A partir duma realidade sonora mais ou menos neutra, mais ou menos complexa, a criação musical depende apenas da criatividade do ouvinte, cada indivíduo decide que experiência musical extrair dessa realidade.

E o público resolve a equação? Qual é a ligação que mantem com a audiência?

O interesse principal desta peça é que cada ouvinte tem uma experiência muito pessoal e única, a fruição aqui depende daquilo que cada um trouxer consigo, do modo como cada pessoa “encaixa” as suas percepções. Já que se vai dar azo a que se “julgue ouvir”, cada pessoa julgará ouvir coisas muito diferentes. No fundo, “Infinity Blur” é um desfoque da fronteira entre a música e o som ambiente, não será possível separá-los. Cada um será o compositor da sua própria experiência musical. Ainda assim, é uma estreia e uma experiência nova, não sei ainda qual vai ser o resultado… (é uma experiência nova para mim, John Cage realizou inúmeras experiências deste tipo…)

Em relação à audiência, tenho contactos esporádicos com ela. Vemo-nos de vez em quando, mas não sei se temos uma ligação…

E com a crítica musical?

(respira fundo) Parece estar a passar uma época negra de irresponsabilidade e abuso de poder duma geração de pseudo-críticos que reinou aqui há alguns anos. Ainda estamos muito “verdes”, ainda há pouca gente a saber realmente o que diz. Mas este país é muito bonito e, com os anos e o esforço de todos nós, talvez vá “ao sítio”.

«Aeriola Frequency» obteve referências significativamente elogiosas em alguns media norte-americanos. Esse facto teve repercussões no seu trabalho?

É sempre agradável receber sinais de reconhecimento, sobretudo se os elogios são inteligentes. Tem naturalmente um efeito tranquilizante e encorajador, mas na verdade prossigo imperturbávelmente o trabalho no rumo que vou traçando, tal como fiz em longos anos de indiferença e hostilidade dos media (locais). Faço sempre aquilo em que acredito e a crítica não me faz desviar um milímetro.

Crê na existência de um som meta-físico?

Essa é uma excelente pergunta…

Ora vejamos: O fenómeno do som é, na sua génese, essencialmente físico – uma vibração que é transmitida por um meio elástico (ar, água, sólidos, etc), mas para que haja “som” é preciso um cérebro. O som é a percepção que temos dessa vibração, que após entrar no nosso ouvido é convertido em impulsos eléctricos que o cérebro entende. Os impulsos eléctricos ainda são fenómenos físicos, mas então tomamos consciência, e esse som pode ficar na nossa memória e associar-se às nossas emoções. Numa palavra, o som passa a fazer parte duma parte de nós a que chamamos “alma”. E, felizmente, não faço ideia como… Mas aqui estamos já em plena metafísica. E viemos aqui parar dum modo que cabem todos os sons…

Agora, recuemos um pouco, de volta ao cérebro. Pouco sabemos sobre este “aparelho” maravilhoso, mas já percebemos que não é nenhum computador e processa informação de modos bem estranhos, os dados que recebemos são muito bem “mastigados” antes de podermos aceder a eles, de modo que por vezes já diferem substancialmente da “realidade”. Assim, muitas vezes ouvimos sons que não existem realmente, apenas julgamos ouvi-los. Isto pode acontecer em inúmeras situações, desde fenómenos complexos, acústicos e psicoacústicos, até variados estados alterados de consciência (como o limiar entre o sono e a vigília, por exemplo)…

Não tenho uma abordagem mística do som, mas o som decerto transcende a Física por muitos lados e de muitos modos possíveis.