UM

por André Gomes, Out — Dez 2006 (Lisboa, Portugal)

 

Entre Harmonic Series 2 e Space passaram-se dois anos. Space foi um disco difícil de conceber?

 

Dizer que foi difícil é demasiado leve. Manobrar uma galáxia de coisas electrónicas fora de qualquer contexto cultural ou histórico conhecido pareceu-me uma tarefa sobre-humana. Duvidei se seria capaz de chegar a algum lado, mas, naturalmente e ao fim de muito esforço, consegui.

 

Para este novo disco deixou a guitarra de lado. Foi uma opção óbvia? O que nos pode contar acerca da feitura de Space?

 

Se eu quiser pregar um prego, não uso uma chave de parafusos, certo? Se eu quiser fazer música de osciladores, não preciso da guitarra, uso osciladores. Nunca fui escravo de nenhum instrumento e já deixei a guitarra de lado antes, não há novidade nisso…
O “Space” teve, como dois dos maiores desafios, a necessidade de ter gravações de performance em vários instrumentos enquanto estivesse em pico de forma em cada um. Isso exigiu muito tempo, uma vivência, as peças a solo, vários concertos, etc., para CADA instrumento. Mas o mais difícil foi criar uma situação em que esses registos parecessem ouvir-se uns aos outros, estabelecer um espírito colectivo entre coisas que foram gravadas com meses de distância e em circunstâncias muito diferentes. O “topo” da aventura foi integrar o Sei Miguel e a Fala Mariam – foram “só” seis meses de trabalho para 3 minutos de música.

 

Que tipo influências se manifestam com mais força e poder neste disco?

 

Não creio que se possa falar de influências. O Space Program configura uma abordagem nova à música, de raíz, portanto o meu trabalho foi estabelecer uma disciplina e uma prática num território que em verdade não é habitado por ninguém. Mas essa disciplina deve muito aos ensinamentos de Sei Miguel e do seu próprio sistema musical. Sei Miguel não é uma “influência”, é um campo de conhecimento.

 

Este novo disco é a primeira parte do Space Program. O que nos pode contra acerca deste projecto e dos próximos passos do mesmo?

 

Não, o Space Program arrancou em 2004 e tem evoluído constantemente, com as peças de concerto (“Space Studies”). O “Space” é apenas o primeiro disco do programa. A partir daqui, vou começar a trabalhar no Space Study 4 (sintetizador analógico) e numa nova versão do Space Study 1. Em termos discográficos, estou a terminar o “Space Solo 1” primeiro álbum da série Solo, e já estou numa fase avançada de produção do “Space Elements Vol. I”, que estreia a segunda série de edições. Estão previstos três volumes de sério Solo e seis da série Space Elements, mas isso pode ainda ser alterado com o tempo. É trabalho para os próximos 6 anos, pelo menos…

 

Li algures um texto acerca do disco que terminava com a frase “One small step for man, one giant bleep for mankind”. O que lhe parece?

 

Por um lado, essa frase parece sugerir que se trata dum contributo para as perspectivas musicais da humanidade, o que, numa escala muito modesta e passe o aparente pretenciosismo, é verdade. Por outro lado parece uma referência a uma imagem que está em voga que é a de entender “Space” como um exercício de ficção científica. Fácilmente se pode ter essa sugestão, mas é superficial – isso não é o assunto do Space. É uma percepção muito superficial.

 

A colaboração entre Sei Miguel e Rafael Toral parece ser habitual nos últimos tempos. A aprendizagem/ensinamento e a influência são partilhadas por ambos?

 

“Influência” é uma palavra pouco usada por aqui. Trabalhamos juntos desde 1993, embora agora com mais intensidade. Temos realmente a capacidade de nos enriquecermos mútuamente. Mas tenho mais a aprender com ele do que o inverso.

 

Em tempos tentou estudar música mas descobriu rapidamente que o seu caminho era o da exploração e da descoberta e que o ensino musical convencional lhe era irrelevante. Presumo que hoje continue a pensar igual, uma vez que afirmou recentemente que as perspectivas futuras do seu trabalho pré-Space ameaçavam tornar-se de certa forma confortáveis e formulaicas… Como se parte para um novo trabalho querendo fazer um corte absoluto com o passado?

 

Acho que identifiquei as características que eram típicas do trabalho anterior (logo, previsíveis), e iniciei uma linha de trabalho que adoptasse características diferentes, se não opostas. Por exemplo, no lugar de “drones” passei a ter silêncio… Mas também descobri que um corte absoluto era impossível, não podemos simplesmente renunciar a nós próprios. Há continuidades, permanências, traços em comum. Passei algum tempo a tentar perceber isso, onde é que havia ruptura e onde é que havia continuidade. Percebi que o trabalho com a electrónica e algum experimentalismo eram continuidades, assim como alguma prática em improvisação que já trazia do passado.

 

Não teme chegar a uma certa altura antes do processo de conclusão do programa Space e ter essa sensação de que as perspectivas futuras do seu trabalho ameaçam tornar-se confortáveis?

 

Bela pergunta… mas estou certo que não. Enquanto o meu trabalho anterior de composição era focado na forma do objecto final, o foco agora é no processo, que é vivo, depende sempre daquilo que sou capaz de tocar. E isso está em evolução constante, à semelhança do que acontece no jazz. Cada vez toco melhor e quanto mais sinto isso, mais me parece que sei muito pouco e que o caminho à minha frente é cada vez maior. É fascinante que quanto mais profundamente estudamos um assunto, maior se revela a nossa ignorância a seu respeito…

 

Afirmou recentemente que descobriu que o campo de conhecimento na música com o qual mais tinha para aprender era o jazz. De que forma é que essa descoberta o levou a fazer um disco com base na electrónica?

 

Bem, já tinha decidido que ia trabalhar em música electrónica quando descobri isso. Eu queria encontrar uma maneira de abordar instrumentos electrónicos dum modo físico e que dependesse de decisões pessoais instantâneas, com uma estruturação de discurso que fosse livre mas integrasse uma disciplina, noções de fraseado… A música popular urbana não faz isso, a música clássica/ erudita também não e a maioria da música electrónica que conhecemos deriva de uma e outra ou de processos baseados em experimentalismo ou em sistemas. Tornou-se claro que aquilo que eu queria aprender para trabalhar em música electrónica tinha sido desenvolvido fora dela, no jazz…

 

Como coabitam ou vão coabitar os capítulos do programa Space referentes aos concertos em relação com aqueles dos discos? No concerto que vi na Casa da Música, por exemplo, surgiam alguns elementos provenientes de Space…

 

Exacto, o “Space” indica pistas para muito trabalho que há-de vir, mas quero introduzir sempre elementos novos. Mas em geral penso que são percursos independentes. Os discos constroem um desenvolvimento algo sistemático e metódico, e reflectem novas descobertas que podem vir de concertos. Os concertos são o real “ponto da situação”, o “pulso” do programa, reflectem o estado evolutivo em que estou a cada momento. Os concertos podem ser muito diferentes, mesmo com um intervalo curto entre eles, porque o programa não é linear, evolui em direcções diferentes ao mesmo tempo.

 

Quanto tempo e atenção dedica à construção de instrumentos hoje em dia? Que papel desempenham esses instrumentos no programa Space?

 

Só alguns dos instrumentos são construídos, outros são modificados ou mesmo “encontrados”, descobertos. Tento passar mais tempo a tocar e a gravar do que a construir coisas. Não me considero construtor de instrumentos nem “inventor”. O que é realmente importante é a música. Esses instrumentos são, claro, centrais no Space Program, todo ele gira à volta do que eu puder fazer com eles enquanto músico e instrumentista. São instrumentos que lidam com o som duma forma livre, não formatada (como é, por exemplo, um teclado).

 

Colaborou recentemente com o Afonso Simões dos Fish & Sheep, o Manuel Mota tem tocado com o Pedro Gomes e a Rita Vozone dos CAVEIRA. Crê ser possível uma espécie de aproximação crescente destas duas gerações de improvisadores?

 

Não sei se são improvisadores, pelo menos não me considero um. Mas acho que pessoas com uma mente aberta que se interessam mútuamente não encontram qualquer questão geracional. Acho que esta “nova geração” mudou a face da música feita em Portugal em muito pouco tempo, o que só por si é um feito notável e surpreendente. Têm uma dinâmica, uma ética e uma frescura que eu nunca tinha presenciado e é extremamente bem vinda.

 

 

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