Jazz.pt

por Manuel Poças, Maio 2006 (Lisboa, Portugal)

– percebi o contexto em que deste por terminada a tua intervenção na guitarra, mas talvez pudesses explicar melhor a tua opção por instrumentos ‘sem passado’, e, dentro dessa escolha, a lógica que susbstiu às diferentes opções.

Terminei uma linhagem de trabalho em que usei a guitarra como instrumento principal, mas isso não é o mesmo que dizer que terminei o trabalho com guitarra. No meu programa de trabalho (o “Space program”) prevejo o regresso à guitarra daqui a poucos anos.
Essa opção foi natural, e assumi-a quando observei que era uma característica comum a todos os instrumentos que uso. Sempre fui avesso a escolas, tradições, técnicas e culturas estabelecidas. Sempre optei por descobrir em vez de “estudar”. Também é por isso que não pratico nenhuma técnica, nunca tive o hábito de praticar ou treinar. Para mim a destreza, ou o virtuosismo, são estados mentais. Sou capaz de estar um mês sem tocar e conseguir um “take” à primeira ou um concerto.
De certo modo, este é um trabalho muito mais exigente e difícil, é um grande desafio. Antes de tocar música, tenho que estabelecer, identificar, o vocabulário do instrumento. Antes disso, tenho que descobrir e consolidar a técnica, como é que aquilo se toca. E antes disso, heh, há que construir o próprio instrumento e antes ainda, conceptualizar o que quero que ele faça, para que quero que sirva… Ainda há outras questões, como o tipo de interface gestual, como é que o instrumento se relaciona com o corpo humano, e que valor performativo pode ter em palco…
Nada disto vem com manual de instruções, há que criar todos os sistemas de raiz.
Naturalmente que há instrumentos que se prestam a funções diferentes, há uns mais “vocais”, próprios para um fraseado solista, há outros com uma vocação algo mais textural, com comportamentos mais “lentos”, outros ainda com uma vocação mais rítmica. Há instrumentos mais orgânicos, outros mais mecânicos, uns mais nervosos, outros mais inertes… Como o “Space” é um trabalho orquestral, alguns dos instrumentos foram pensados com um critério algo funcional, por vezes inspirei-me numa analogia com uma “big band”…

– mesmo tocando ‘sem passado’ tocas com a memória do jazz
(concordas?). em que medida é que a linguagem do jazz te pareceu a
mais adequada para desenvolveres o projecto space?

[Para clarificar – estás a falar do “Space program”, a não confundir com “Space”, o primeiro disco do programa] Hmmm… eu diria que aquilo que mais me aproxima do jazz é a sua natureza, a maneira de ser e estar. Claro que se me envolvo com o jazz, entro numa dimensão onde circulam e se cruzam fantasmas de New Orleans a Coltrane… mas não é por aí. Dada a natureza dos meus instrumentos, lidar com a “linguagem” do jazz é uma impossibilidade técnica. Não posso lidar com escalas, acordes, figuras rítmicas e toda a cultura técnica que vem da história do jazz. Mas o jazz é feito de decisões individuais, decisões instantâneas, que são informadas por uma certa disciplina, uma ética, um recurso ao que o Joe Morris chamava uma “base de dados” de técnicas, formas e soluções muito pessoais. Tem a ver com o “som” de uma pessoa, e com uma palavra que me interessa, a “conception”. Neste sentido, considero-me um músico de jazz. Tudo o que faço tem uma relação íntima com estes valores, é por aqui que posso aprender mais.

– (na sequência das colaborações mútuas) o novo álbum do sei miguel está terminado – o que é já podes dizer sobre ele, e até que ponto se interliga com aquilo que fizeste no Space?

Bem, sou suspeito, mas considero “The Tone Gardens” uma obra sublime, sem dúvida o ponto mais alto de toda a obra de Sei Miguel até hoje. A ideia de “jardim” tem a ver com a qualidade de “solista” de todos os membros dos quartetos. Um pouco como se fossem quatro solos cruzados, sem hierarquia… e como se se passeassem por um jardim. O resultado é duma delicadeza e duma precisão que são marcas de Sei Miguel, mas aqui conseguidas de modo superior. Enfim, Sei Miguel é um mestre genial e é uma sorte e privilégio trabalhar com ele.
O “Tone Gardens” tem uma espécie de relação parental com o “Space”, porque foi nessas formações que desenvolvi os instrumentos e discursos que são a “espinha dorsal” do Space. Foram o berço do Space, por assim dizer. De certo modo, são discos que pertencem um ao outro. Já se deve ter percebido que devo muito ao Sei Miguel, e sem ele o Space program simplesmente não seria possível.

– (mais ou menos fait divers, mas julgo que importante tendo em conta o espaço onde a entrevista vai ser publicada) a determinada altura referes um desencanto pelo período dos anos 80 no que diz respeito ao jazz. podes dar uns exemplos concretos? imagino que tenha sido nessa década que começaste a ouvir este tipo de música – começaste por onde?

É conhecido de todos que houve nessa altura uma espécie de revivalismo, uma promoção massiva dum jazz muito identificado com os anos 1940/ 50, olhados como uma “época de ouro”… não vale a pena apontar exemplos, e também não se trata de desencanto, é uma observação. Talvez tivesse que ter sido assim.
A minha aproximação ao jazz foi muito lenta e progressiva. Comecei por vir da cultura rock, e depois enveredei por uma via de pesquisa num território muito específico. Tive uma ligação muito forte a John Cage e Alvin Lucier, assim como Sonic Youth e My Bloody Valentine. Logo, a minha relação com o jazz foi remota ao início, estava claramente fora da minha esfera de interesses. Lembro-me de ouvir o “Ascension” em casa do Phill Niblock e de ter ficado deslumbrado com aquele caos abstracto e exuberante e guardei-o na memória por um ouvido completamente destreinado em jazz. Hoje oiço o Ascension e “leio” os sinais entre os músicos, leio a estrutura, o fluxo de cada solo…

++ um dos aspectos que achei mais interessantes ao ouvir o álbum foi precisamente essa componente orquestral que referes, a forma como pensaste todo um conjunto de diferentes – e aqui ‘diferentes’ tem um siginificado particularmente literal – elementos sonoros. (pedia-te um comentário, ou uma resposta a uma espécie de pergunta que seria “como é que te desdrobaste ao longo de todo esse processo? é raríssimo um multi-instrumentalismo tão abrangente por parte de um único músico, particularmente no que toca ao “som do jazz” – tentas pensar instrumentos diferentes como possuindo personalidades/”base de dados” próprias? de repente lembrei-me de pessoa e alberto caeiro ou ricardo reis… estou a ir longe demais? imagino que sim)

[ não podemaos falar de “personalidade”, sou demasiado simples comparado com Pessoa ] rt – É um processo lento e natural. Há dois tipos de instrumentos: os que se prestam a um fraseado complexo e que me permitem desenvolver trabalho ao ponto de os usar em concerto a solo, e os que se prestam a formas algo simples, geralmente pensados para uma função específica. Por exemplo, por todo o lado temos solos de saxofone, mas nunca ouvi solos de pandeireta. Isto porque a pandeireta não se presta a um trabalho suficientemente complexo. É a “vocação” do instrumento. Tenho realmente instrumentos com comportamentos e vocações muito variadas, e naturalmente revelam aptidão para o seu próprio vocabulário. Por outro lado, enquanto músico tenho à-vontade com todo o espectro sonoro, toda a gama de ataques e dinâmicas, porque trabalhei durante vinte anos o som como matéria prima. Toquei percussão, guitarra e toda a espécie de electrónica.

+++++”(…) De certo modo, este é um trabalho muito mais exigente e difícil (…) Nada disto vem com manual de instruções, há que criar todos os sistemas de raiz” — quantos instrumentos completaste, quantos ficaram inacabados ou meramente na tua imaginação?; trabalha-los com vista a um papel concreto ou permites-te a uma espécie de “estética do erro”?

rt – Relembro que o meu conceito de instrumento não é necessáriamente um objecto – é frequentemente uma envolvente tecnológica, uma configuração de dispositivos com determinadas conexões e capacidade performativa. Hoje tenho uma maior preocupação com o interface humano e a fisicalidade da performance, por isso olho mais de perto para a composição de um instrumento. Todos os instrumentos têm duas dimensões: O interface e o gerador. Um trompete tem pistões e um bocal como interface. Como gerador, os lábios e o tubo. Um piano, teclado e pedais como interface, martelos e cordas como gerador, e por aí adiante. Alguns dos meus instrumentos são descobertas, quase “objectos encontrados”, outros são meticulosamente preparados. Outros ainda, lá está, são interfaces. Por exemplo, as luvas não fazem absolutamente nada por si. Dependem do software que for escrito para elas, o que tem possibilidades ilimitadas – até podem controlar um sintetizador analógico. De resto, aqui não há “erro”, há pesquisa e descoberta, e claro que muitas vezes chego a resultados inesperados. Quantos? É uma pequena galáxia. Instrumentos aparecem e desaparecem, mudam de forma…

++++++definirias o space program como improvisação estruturada?

rt – A palavra “improvisação” tem mil faces, é usada para muitas coisas diferentes, o seu significado muda duma pessoa para outra. Vamos lá ver… “Improvisação” em geral, aplicada à música, descreve o resultado de decisões tomadas em tempo real por um músico. Aqui cabe muita coisa, do jazz à improvisação na música barroca, por exemplo, e também a dita música improvisada. Quando se fala hoje em “improvisação”, normalmente fala-se do género “música improvisada”, que imagino como aquela que prescinde de toda a disciplina, toda a referência, que é radicalmente aberta (bem, no fundo… é impossível!). Improvisar significa resolver problemas, inventar soluções. O que eu faço tem um território bem delimitado e diferente do da “música improvisada”. São decisões em tempo real, sim, mas subjacentes a uma disciplina muito específica e rigorosa – ou seja, é uma prática que se aproxima mais do jazz.
Uma vez Fala Mariam explicava a alguém que o fraseado que utilizamos é “estrutural”, ou seja, cada som emitido é estruturante por si. “Improvisação estruturada” seria uma estrutura exterior dentro da qual se improvisa. Não é nada disso… Eu defino o Space program como um programa de pesquisa sobre a performance em música electrónica, mediante uma… disciplina universal de estruturação de discurso. É uma espécie de pedra filosofal…